sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Nanociência, nanoficção e a meleca cinzenta

fonte:  http://www2.unesp.br/revista/?p=3532

por Luciana Christante em 10/08/2011

Se você pesquisar o termo “nanotecnologia” no Google, em pouco tempo vai deduzir que esse ramo da ciência que manipula a matéria em dimensões nanoscópicas (milhares de vezes menores que a espessura de um fio de cabelo) é o motor de uma nova revolução industrial, com potencial de trazer benefícios ilimitados para a sociedade.

Mas, basta aprofundar um pouco mais a pesquisa para se dar conta de que muitos cientistas começam a fazer uma revisão crítica dessas expectativas. E a fazer perguntas como: As inovações nanotecnológicas são mesmo revolucionárias ou apenas o melhoramento de tecnologias já existentes? Quantas aplicações desse tipo estão de fato no mercado? Os nanomateriais não poderiam trazer riscos à saúde? E ao ambiente? Se houver riscos, a sociedade não deveria ser informada? O discurso eufórico sobre o potencial desta área não estaria impregnado de elementos típicos das narrativas de ficção científica?

As respostas a essas questões você encontra na reportagem de capa da edição de agosto. Aqui meu objetivo é falar de um tal Eric Drexler, o inventor da “meleca cinzenta”, uma história muito curiosa, que não coube nas páginas impressas.

Mas antes preciso falar do americano Richard Feymann (1918-1988), Nobel de Física em 1965. Provavelmente você já ouviu falar que ele é o pai da nanotecnologia. Sua palestra proferida em 1959 “There’s plenty of room at the bottom” (Há muito espaço lá embaixo), na qual especulava sobre a possibilidade de manipular a matéria em nível molecular e atômico, é amplamente difundida como o evento fundador desta ciência. Mas não é bem assim.

Num artigo interessantíssimo publicado em 2005, o antropólogo Chris Tourney prova que a palestra icônica de Feymann ficou esquecida por pelo menos duas décadas e praticamente não influenciou os cientistas que mais tarde contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento concreto da nanotecnologia (por exemplo, com a invenção da microscopia eletrônica de alta resolução).

Foi o engenheiro americano Eric Drexler que muito espertamente resgatou esse evento do limbo do esquecimento e pela primeira vez o associou à palavra nanotecnologia (que por sua vez foi criada por um japonês em 1974) no livro Engines of creation (“Máquinas da criação”, sem tradução no Brasil). Publicado em 1986, o ensaio, em tom de ficção científica, fantasia sobre a possibilidade teórica de construir robôs de dimensões moleculares.

Drexler, na época um jovem prodígio no MIT, imaginava esses nanorrobôs viajando pelo corpo humano com a missão de perseguir e destruir agentes infecciosos ou tumores, de desobstruir artérias, de injetar medicamentos apenas nas células doentes, de retardar o envelhecimento, enfim.

Eles também dariam conta de limpar o solo, rios ou oceanos contaminados por produtos químicos. Além de sintetizar alimentos, produzir energia, construir edifícios, automóveis etc. Em síntese: a panaceia universal. E foi dessa forma que a nanotecnologia foi apresentada ao público pelos cientistas e por meio dos veículos de comunicação, até o ano 2000. Se você tiver interesse e paciência para fazer uma pesquisa no acervo da Folha de S. Paulo, por exemplo, verá que não estou exagerando.

Só a partir do ano 2000 a nanotecnologia passou a ser definida como o estudo da manipulação da matéria em escala atômica ou molecular (entre 1 e 100 nanômetros). Uma definição bastante ampla, que serviu para acomodar muitas coisas diferentes. Assim os nanorrôbos que iam revolucionar o mundo foram condenados ao ostracismo. E junto com eles, Eric Drexler. Esse destino inglório foi uma decisão do Congresso americano. Mas por quê?

Em 2000, o governo americano criou um ambicioso projeto, o National Nanotechnology Initiave (NNI), coordenado pela Casa Branca e que reunia universidades, institutos de pesquisa e agências estatais, para alavancar essa área de pesquisa que até então imaginava-se que ia revolucionar a indústria, a medicina, o céu e a terra.

Drexler ainda era uma pessoa ouvida nessa época, presidia o Instituto Foresight (um “think tank” criado por ele e a esposa) e chegou a discursar no Congresso americano em favor do projeto. Afinal, era preciso convencer os congressistas a aprovar uma grana preta para financiar o NNI. O problema é que os mais conservadores se lembraram de “Máquinas da criação” e, pior ainda, lembraram da ameaça da meleca cinzenta. Não seria o fim do mundo?

A meleca cinzenta (tradução livre do inglês “grey goo”) aparece no livro de Drexler como um cenário catastrófico no qual os nanorrobôs se autoreplicam sem controle, devorando tudo o que encontram pela frente. Se por um lado a ideia caiu no gosto de autores de ficção científica, por outro provocou rejeição em muitos americanos, entre eles alguns que então ocupavam cadeiras no Congresso. Resultado: eles empataram a votação do projeto. A solução foi redefinir o conceito de nanotecnologia, deixando de lado os nanorrobôs (até porque eles eram só uma remota possibilidade teórica) e parar de falar em qualquer coisa que lembrasse a meleca cinzenta. O remendo deu certo e o financiamento foi aprovado.

É claro que resumi muito essa história, por isso faço questão de deixar a seguir os links para algumas referências importantes (infelizmente, todas em inglês). Também vai ficar mais fácil entender por que estou falando dessas coisas ao ler a reportagem “O real tamanho da nanotecnologia”, nossa capa de agosto.

** Apostolic succession, de Chris Tourney, um antropólogo da Universidade da Carolina do Sul (EUA) que pretendia responder uma pergunta simples: “A nanotecnologia descende da palestra de Richard Feymann de 1959?”. Os resultados desse belo estudo foram publicados na mesma revista em que a palestra do físico saiu como artigo em 1960. Tourney mostra também a ojeriza que muitos cientistas têm por Drexler até hoje.

** Perfil de Eric Drexler na revista Wired (outubro de 2004) pelo jornalista Ed Regis, que mostra como foi a ascensão e a queda do engenheiro, com detalhes sobre as manobras do governo americano para tirá-lo de cena e fazer passar o projeto que garantia recursos para o National Nanotechnology Iniative.

** Reportagem publicada na Nature em setembro de 2010 (para assinantes) mostra a revisão pela qual passa a National Nanotechnology Iniative, que desde 2000 consumiu US$ 12 bilhões e, sem resultados exultantes e em meio à crise econômica americana, está sendo repensada e ameaçada de cortes.

** “Dez maneiras pelas quais o mundo pode acabar”: invasão da meleca cinzenta. Em 2007, o Discovery Channel apresentou este divertido programa. Além da invasão da meleca cinzenta, a lista contém supervulcões, holocausto nuclear, choque de asteroide, invasão de alienígenas, entre outros cataclismos.

Imagem: Science Photo Library

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